Alípio Severo Abranhos nasceu no ano de 1826, em Penafiel, no dia de Natal.
A Providência, por um símbolo subtil e engenhoso, fez nascer no dia sagrado em que nasceu Jesus de Nazaré, aquele que em Portugal devia ser o mais forte pilar e o procurador mais eloquente da Igreja, dos seus interesses e do seu reino.
Muitas vezes o Conde se comprazia em contar que, nessa noite de 24 de Dezembro de 1826, Inverno que ficou na história pelas grandes neves que caíram, seus pais – segundo a tradição venerada na família – tinham armado um presépio, como era costume nesses tempos em que a boa fé portuguesa amava a piedosa devoção dos altares íntimos. Ao centro do presépio, florido de muita verdura, entre os animais da narração evangélica, o Menino Jesus sorria, nos braços de uma Virgem, obra delicadamente trabalhada por Antão Serrano, o grande santeiro de Amarante. Em torno, ardiam as velas de cera; na cozinha, cantavam nas frigideiras os rojões da ceia; o lume de lenha húmida estalava jovialmente, e fora, na neve que caía, os sinos repicavam para a missa do Galo – quando a mãe do Conde, subitamente
Sentiu o tenro ser...
como diz o nosso grande lírico no seu poema, A Mãe.
O parto foi singularmente feliz, e, aludindo a esta circunstância, o Conde muitas vezes me dizia, que, segundo o seu velho amigo Dr. Flores, a facilidade em nascer era o indício misterioso de um destino fácil e de imprevistas fortunas. Todos os homens providenciais – Napoleão I, o nosso Santo Papa Pio IX, o grande estadista Fonseca Magalhães, nasceram – como dizia o Conde com chiste – «com uma perna às costas!» A fortuna começa-lhes no ventre maternal: a porta da vida abre-se-lhes a dois batentes, mostrando-lhes uma sequência de épocas gloriosas, como salões festivos. Outros têm de arrombar com dor essa mesma porta, saindo para um destino escuro como uma estrada de Inverno. Providenciais antíteses da Sorte!
E o parto da mãe do Conde foi tão feliz, que, meia hora depois das primeiras dores, o pequeno Alípio foi trazido triunfantemente para a sala. A comadre sentara-se casualmente diante do presépio, e os dois meninos – o que havia de ser um homem, e o que fora um Deus – sorriam-se à claridade das velas festivas do Natal, ambos nuzinhos, ambos ao colo, enquanto de fora, lançados vivamente, vinham os repiques do sino, através dos flocos de neve!
Tocante quadro; e poucos conheço – se atendermos à glória do Conde d'Abranhos – que mais mereçam ser lançados na tela ou esculpidos no mármore. [...]
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Eça de Queirós
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