quarta-feira, 25 de maio de 2011

ERICO VERÍSIMO

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Erico Veríssimo foi um dos mais brilhantes prosadores da língua portuguesa. O seu livro “Olhai os Lírios do Campo” é uma obra notável, não só pelo estilo, mas sobretudo pela composição e análise da personalidade do protagonista. Vale a pena ler se ainda há um leitor que não conhece.

[...] Eugénio olhava para o pai, enquanto enfiava as peúgas de lã. Lá estava ele encurvado sobre um par de calças, cosendo. Era um homem calado e murcho, velho antes dos quarenta. Tinha uma cara inexpressiva, dois olhos apagados e um ar de resignação quase bovino. Usava óculos, pois a vista já
estava curta (as malditas fazendas pretas, esta luz fraca). Mais tossia do que falava. Quando falava era para se queixar da vida. Queixava-se sem amargura, sem raiva. Eugénio tinha uma grande pena do pai, mas não conseguia amá-lo. Sabia que os filhos devem amar os pais. A professora falava na aula em «amor filial», contava histórias, dava exemplos. Mas, por mais que se esforçasse, Eugénio não lograva ir além da piedade. Tinha pena do pai. Porque ele tossia, porque ele suspirava, porque ele se lamentava, porque ele se chamava Ângelo. Ângelo é nome de gente infeliz, nome de assassinado. [...]

[...] Um dia, caiu um raio na casa do velho Galvão, matando-o e ferindo-lhe a filha. A mãe disse: «Deus castigou. Eles eram muito malvados». Além do castigo da professora, do castigo dos pais da gente, havia então um castigo maior, muito maior - o castigo de Deus?
Eugénio temia esse Deus que em vão a mãe lhe queria fazer amar. Quando à noite rezava o «Padre nosso que estais no Céu... » - ele imaginava um ser de forma humana, mas terrível, misterioso e implacável. Era invisível mas estava em toda a parte, até nos nossos pensamentos. A ideia do pecado então começou a perturbar Eugénio. Estudava as lições e portava-se bem na aula porque temia os castigos da professora. Não fumava, não dizia nomes feios nem fazia «bandalheiras», porque tinha medo dos castigos da mãe. Fugia dos maus pensamentos e não fazia más criações, nem às escondidas, porque Deus estava em todos os lugares e enxergava tudo. Um dia, enumerando a lista dos grandes pecados, alguém lhe disse: «Não amar os pais é pecado». Então ele estava pecando! Por mais que se esforçasse, não podia amar aquele pai que nunca levantava a mão para lhe bater, que nem mesmo chegava a erguer a voz para o repreender. [...]
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Erico Veríssimo in "Olhai os Lírios do Campo"
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