domingo, 8 de maio de 2011

O CULTO DO ESTILO

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[...] Uma das inumeráveis questões, que, em nosso entender, eternamente ficarão por decidir, é a que versa sobre qual dos dois ditados - voz do povo é voz de Deus – ou - voz do povo é voz do diabo - seja o que exprima a verdade. É indubitável que o povo tem uma espécie de presciência inata, de instinto divinatório. Quantas vezes, sem que se saiba como ou porquê, corre voz entre o povo, que tal navio saído do porto, tão rico de mercadorias como de esperanças, se perdeu em tal dia e a tal hora em praias estranhas. Passa o tempo, e a voz popular realiza-se com exacção espantosa. Assim de batalhas; assim de mil factos. Quem dá estas noticias? Quem as trouxe? Como se derramaram? Mistério é esse, que ainda ninguém soube explicar. Foi um anjo? Foi um demónio? Foi algum feiticeiro? Mistério. Não há, nem haverá, talvez, nunca, filósofo que o explique; salvo se tal fenómeno é uma das maravilhas do magnetismo animal. Esse meio ininteligível de dar solução a tudo o que se não entende, e acaso a única via de resolver a dúvida. Se o é, aí damos mais um osso a roer aos físicos do magnetismo.
Foi o caso: quando a cavalgada, de que fizemos menção no fim do antecedente capítulo, vinha descendo a encosta sobranceira à planície do mosteiro, entre o povo que estava dentro da igreja, impaciente já pela demora do auto, começou-se a espalhar um sussurro, que cada vez crescia mais: o motivo dele não era fácil sabê-lo: nenhuma novidade ocorrera; ninguém tinha entrado ou saído. De repente toda aquela multidão se agitou, remoinhou pela igreja, e principiou a borbulhar pelo portal fora, como por bico de funil o liquido deitado de alto. Tinham sabido que el-rei chegava, e todos queriam vê-lo descalvagar, porque D. João I, plebeu por herança materna, nobre por ser filho do D. Pedro I, rei eleito por uma revolução, e confirmado por cinquenta vitórias, era o mais popular, o mais amado, e o mais acatado de todos os reis da Europa. Vinha montado em uma possante mula, e assim mesmo em outras os fidalgos e cavaleiros de sua casa. Trazia vestida sobre a cota uma jórnea de veludo carmesim, monteira preta, e nebri em punho, em maneira de caçada. Chegando à porta do mosteiro, onde o esperava já Fr. Lourenço com parte da comunidade, apeou-se de um salto, e com rosto risonho e a mão no barrete, agradeceu sua cortesia e amor aos populares, que gritavam apinhados à roda dele: - "viva D. João I de Portugal: morram os castelhanos!" - grito absurdo, mas semelhante aos vivas de todos os tempos; porque o povo, bem como o tigre, mistura sempre com o rugido de amor o bramido que revela a sua índole sanguinária. [...]

Alexandre Herculano in “A Abóbada”

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