segunda-feira, 2 de maio de 2011

EXCERTOS ESCOLHIDOS

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[...] Raro, raro, o senhor marquês que residia em Lisboa, na roda dos alegres viveurs de então, se aventurava até aquele deserto da quinta, calado, religioso, e com uma expressão claustral de austeridade. Nessas poucas visitas, sua excelência não vinha por certo estancar saudades de sua mulher, senão solicitar da pobre dama, mais uma vez, assinatura para alguma hipoteca que o autorizasse a prosseguir na sua vida libertina de velho rapaz. Chegava então pela noite, em caminho de ferro, estava até ao outro dia, e na madrugada seguinte, zut! ele aí vai. As palavras que os dois esposos trocavam, eram uma simples fórmula de deferência imposta pelo orgulho às cogitações chocarreiras da criadagem, em que ela buscava mostrar o desdém que nutria pelo esposo, e o esposo parecia artificializar ainda mais, a sua amabilidade correcta de marido desencantado. Na primavera contudo, a visita do marquês prolongava-se dalguns dias, como era o tempo das caçadas. Trazia então quatro ou cinco velhos amigos, alguns criados, e as matilhas de galgos requeridas para a diversão. A marquesa recluia-se mais, se é possível, no seu ângulo de palácio, pretextando que a luz lhe encadeava a vista, que o ruído lhe exasperava a migraine, e o aspecto da alegria dos outros mais fazia contrastar a sua mortal e esmaecida tristeza de antiga moribunda. E os caçadores ficavam sós, livres inteiramente para deixar correr sem respeito, naquelas duas ou três semanas de campo, uma impetuosa existência de barões feudais, acesa nas risadas do bom vinho das cavas, nas correrias em pós das raposas e lebres, e castigando-se á noite, finda a ceia, Deus sabe, entre os braços das mulheres que Ezequiel recrutava discretamente pelo burgo, na grande sala de lambeis gobelinos, com mobílias marchetadas de quatro séculos. [...]
Fialho de Almeida in “Aves Migradoras”
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