quinta-feira, 5 de maio de 2011

O GABINETE DE CAMILO

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Eu já citei algures estas palavras de Alexandre Dumas pai: «Há sempre nos móveis que vos cercam alguma coisa de vós mesmos».
Tão profunda verdade, se carecesse de demonstração, encontrá-la-ia no gabinete de Camilo Castelo Branco.
É aquele um templo consagrado unicamente à Arte. Ali tem altar a pintura, a arqueologia, a história natural, e a literatura. Pressente-se que se está no gabinete dum grande romancista porque se adivinha a história de cada quadro, a novela de cada móvel, a epopeia do tinteiro de metal amarelo donde há pouco mais de vinte anos tem nascido para glória das letras portuguesas cerca de cem livros. Tudo ali fala. Há idílios de saudade suavíssima a murmurar ao de cima dos silenciosos companheiros da mocidade; há marcos miliários que rememoram sucessivas fases da vida do escritor. Os verdadeiros amigos de Camilo são aqueles. Só eles guardam o segredo de íntimas comoções, que parecem vibrar ainda em novelas escritas há doze anos, e que primeiro lhe arrancaram lágrimas a ele do que a nós. O talento de Camilo é nosso: estamos há longo tempo familiarizados com ele; tanto o estimamos, que o vamos procurar mal que se anuncia um livro novo. Nós lemos o livro já enroupado em galas de estremada linguagem; mas o seu gabinete lê o esboço da novela tal como lhe saiu do coração. Nós vemos a estátua; o seu gabinete vê Pigmalião. Quando as lágrimas nos chegam a nós já as sentimos dulcificadas pela amenidade da frase. Não as vemos; conhecemos-lhes apenas os vestígios. Mas o seu gabinete viu-as. O mesmo é pelo que respeita a personagens. Nós conhecemos o retrato; o gabinete conheceu o modelo. Camilo tem feito a história de muito homem; só o seu gabinete poderia fazer a história de Camilo. Nós temos o romancista; o gabinete tem o homem. Ainda mais. Se os móveis quisessem falar, revelariam o romance de muito escritor português, que eles têm conhecido e ouvido em íntimas práticas, ora contando os seus desalentos, as suas mágoas, os seus queixumes, ora arroubando-se em enganosos sonhos, em esperanças quase sempre mentidas, em aspirações poucas vezes realizadas...

Alberto Pimentel in “Entre o Café e o Cognac”
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