quinta-feira, 14 de abril de 2011

NÓS AO MENOS TIVEMOS UM EÇA!

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Aí o tens defronte de ti, mudo, impenetrável, com o seu largo chapéu de feltro escondendo a face, a capa cor de mistério traçada à Lindor, e altas botas de pregas reluzentes. A ponta da sua espada ergue de leve, por trás, uma prega subtil, a orla do manto escuro. O traidor! – vem armado!
Como será o seu rosto – claro e pacífico ou sombrio e batalhador? E os seus cabelos – grisalhos e acamados como os de um musgoso conservador, ou negros e revoltos como os de um revolucionário impaciente? E a palma da sua mão – macia e fácil como a do que espalha dinheiro, ou adunca e áspera como a do avaro ganchoso?
«Quem o sabe? Quem o saberá?» diz o cuco da lenda.
Que te trará ele a ti, fiel camarada das Farpas e da sua campanha irónica? Um acesso no teu emprego? A herança de um velho tio? Uma noiva de cinta airosa? Uma bela viagem por conta do Estado? Um pequerrucho guloso de leite?
«Quem o sabe? Quem o saberá?» diz o cuco da lenda. Que ele, o Ano Novo amável, te conserve a cabeça serena, o estômago são, o bolso sonoro, e a mão decidida.
Eis o bom e o positivo na vida. E também que faça penetrar em ti como um calor reconfortante a estima das Farpas – ou, pelo seu nome genérico, a estima do Bom senso.
E que trará ele à Pátria? É justo que pensemos um pouco na Pátria. Porque enfim, temos uma pátria. Temos pelo menos – um sítio. Um sítio verdadeiramente é que temos: isto é – uma língua de terra onde construímos as nossas casas e plantamos os nossos trigos. O nosso sítio é Portugal. Não é propriamente uma nação, é um sítio. Já não achamos mau! A Lapónia nem um sítio é: apenas uma dispersão de cabanas na vaga extensão da neve. Podemos pelo menos desdenhar a Lapónia. A miserável Lapónia!
Como a nossa organização é mais rica, a nossa raça mais digna! Nós ao menos temos um sítio!
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Eça de Queirós in "Uma Campanha Alegre"
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