domingo, 18 de maio de 2014

FALEMOS DO NASCER DA NOITE

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O astrofísico Neil deGrasse Tyson disse há dias, no programa  da TV americana Cosmos, que somos todos descendentes de astrónomos. Parece uma boutade, mas não é tal. Tempos houve em que a contemplação do céu era a televisão dos nossos antepassados, quando, na escuridão da noite, deixavam de poder admirar montes, vales, rios, planícies e rebabá. A contemplação do espaço celeste, com a luz das estrelas, dava para construir lendas, crenças, mitos e um ror de coisas que ainda hoje estão chimpadas no nome das constelações, como Ursa, Escorpião, Centauro,  Pégaso e por aí fora.
Nesse tempo, o homem e os animais eram donos da noite. Depois, veio Edison e a lâmpada eléctrica e a noite foi pelo cano. Mais de 60% do mundo e 99% da Europa e dos Estados Unidos passaram a ter noites poluídas por luzes artificiais amarelas. O homem deixou de ser dono da noite porque a noite acabou, como o dono de um automóvel deixa de o ser quando lho roubam ou um prédio ou uma bomba lhe cai em cima.  Não interessa, dir-se-á—assim é mais catita porque vemos onde pomos os pés, para não falar da contemplação do programa do Zezito na TV. Olhe que não, olhe que não...
O problema não é o de termos deixado de ser astrónomos, como os nossos antepassados, no dizer de Neil deGrasse Tyson. Esse é o aspecto poético, aliás também bastante importante. A espiga é que há funções no organismo que são regidas pela alternância da luz e da escuridão, em ritmos chamados circadianos, que começam a ser seriamente afectadas. É o caso da secreção da melotonina, de várias hormonas, nomeadamente o cortisol, de compostos interventores na defesa contra cancros vários e por essa estrada fora. Além de não podermos inspirar-nos a contemplar os Peixes, a Fénix, a Lira, o Cão Maior, e o Menor também, estamos em maior risco de contrair uma neoplasia da mama, da próstata, do estômago e sabe-se lá mais onde.
A noite não é meramente a ausência da luz do Sol—cabe-lhe papel activo nas nossas vidas. Como diz A. Roger Ekirch, da Universidade de Virginia, mais do que falar no "cair da noite", devíamos dizer no "nascer da noite"—não é líquido que devamos mais ao dia que à noite. Como se pode ser saudável, se se consegue ler o jornal na cama, às três horas da madrugada, com a luz do candeeiro da rua plantado a cinco metros da nossa janela? Não pode!
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