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Um grão de trigo não faz um monte de trigo. Dois grãos de
trigo não fazem um monte de trigo. Três, também não. Muitos grãos de trigo
fazem um monte de trigo. A partir de que número fazem os grãos um monte? Não há
resposta. A noção de monte de trigo é vaga—sofre de vaguidade.
A nossa linguagem, com séculos de existência e evolução, não
conseguiu atingir ainda—aproximar-se sequer—da forma correcta de exprimir
conceitos. É vaga, para não dizer tosca. Serve para atamancar. O problema é que
grande parte do pensamento é realizado com a linguagem. Falávamos há dias da
sua internalização como origem do pensamento, há 70 milhares de anos. Infelizmente
continua primária e o pensamento a enfermar de vaguidade.
Daí resultam dificuldades conceptuais sobre matérias
filosóficas e existenciais. Por exemplo, a noção de causalidade implica que
tudo que existe resulta de alguma coisa. A ser assim, ou há coisas eternas, ou
num dado momento alguma coisa resultou do nada—hipóteses à margem da lógica.
Mas esta é fruto do pensamento, que trabalha com a linguagem e linguagem é
ferramenta limitada. Está mais que visto que um surdo não consegue afinar um
piano e, se é surdo desde a nascença, nem sequer percebe o que é um piano.
Na limitação que é a nossa, só admitimos o nada e o alguma
coisa—provavelmente, é pouco. Bertrand Russell dizia que uma película
fotográfica deteriorada não permite saber quem é o janota que lá está plasmado:
pode ser o Zé, o Chico, o Quim ou outro bem conhecido, incluindo o António
Costa—mas está lá um cidadão bem definido. Isto é, naquela
película estão coisas que não vemos ou, melhor ainda, vemos mas não percebemos.
O mesmo acontece com as nossas palavras, imagens, pensamentos e modelos
científicos.
Por isso, pode acontecer que, além do eterno e do nada,
haja mais coisas na película fotográfica do mundo, coisas que não percebemos,
como o surdo com o piano. Mas não há problema: Keep calm and live to the
fullest.
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