Ontem lia eu um blog, cujo nome já nem me lembro, onde um opinante falava de genocídios, de Stalin, de Hitler, de Pol Pot e por aí fora, para acabar em João Paulo II, a quem atribuía a morte de milhões de seres por SIDA, adquirida por não usarem preservativo. Não lembra ao Diabo tal ideia, pois sobrevaloriza a influência do Papa em regiões como África, onde o problema se põe com maior incidência—nem a influência da opinião papal tem tal relevo, nem nunca seria ela a principal razão do não uso do preservativo. Mas não é da caspa intracraniana do opinante que me quero ocupar, mas antes do problema ético subjacente à opinião do Papa.
Quase toda a acção tem duplo efeito ético, podendo um ser
desejável e o outro não. Às vezes é difícil discernir qual o mais importante.
Por exemplo, as bombas atómicas americanas no Japão mataram muita gente e
preveniram muitas mortes: nunca saberemos se os bombardeamentos foram bem ou
mal feitos. S. Tomás de Aquino condenava o homicídio, naturalmente, mas
considerava-o legítimo em defesa da própria vida. Tal homicídio tem duplo valor
ético, sendo um legítimo—a preservação da própria vida— e o outro mau, mas aceitável,
dada a importância do anterior.
A pergunta é se João Paulo II, em nome de princípios
doutrinários duma religião, fez bem em condenar o uso do preservativo nas
regiões onde a SIDA é um flagelo endémico medonho, causa das maiores tragédias
sociais. Ou melhor: se Jesus Cristo
estivesse no Vaticano, diria a mesma coisa que João Paulo II? Em minha opinião,
e do pouco que conheço da Filosofia do Cristianismo, Jesus Cristo não diria o
que o Papa disse.
O discurso do Papa teve dois efeitos potenciais, sendo um
favorável ao agravamento da situação epidemiológica da doença e suas
consequências e outro manter a fidelidade a uma norma cujo objectivo poderá ser
respeitável à luz de princípios conservadores, mas sem cabimento neste caso de
saúde pública.
Não posso dizer que João Paulo II foi mais papista que o
Papa, pois o Papa era ele; mas seguramente foi mais cristão que Cristo.
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