Do alto da minha ignorância em matéria de escrituras sagradas, declaro que não conheço nenhuma passagem onde esteja referido que Cristo concedeu a Pedro—a pedra sobre que edificou a Igreja e primeiro chefe da hierarquia do Cristianismo Católico—a incumbência, ou a possibilidade, de ele ou os seus sucessores revelarem ao mundo que alguns seres falecidos habitam no Reino dos Céus. Se concedeu, retiro tudo o que segue e ficaria grato que me explicassem como estão ordenadas as coisas. Falo nisto porque li ontem que o Papa João Paulo II, já beatificado, irá ser santificado brevemente, significando que a Igreja informa oficialmente a humanidade que esse Papa está no Reino dos Céus, ou do Céu.
Para ser franco, impressiona-me tal informação, tal como
a de todos os outros santos, porque se afigura um nadinha pretensiosa e, de
certo modo, fora do espírito de humildade que os homens devem ter em relação
Cristo e à sua mensagem. A santificação é a insinuação de que a hierarquia da
Cúria Romana sabe o que se passa no Além-Túmulo. Se não é, parece.
Depois, porque há uma burocracia na santificação, com
organização de processos volumosos, exigindo o preenchimento de certos
requisitos regulamentares. A expressão pode parecer irreverente, mas a intenção
não é. Por exemplo, para ser beato, é exigido um milagre; para ser santo são
exigidos dois milagres. Se não houver milagres, não há santo, ou melhor, pode
haver, mas sem ser reconhecido como tal.
Habitualmente, o milagre diz respeito a curas ditas sem explicação.
Para a beatificação de João Paulo II foi levada em conta a cura sem explicação
de uma freira francesa com Doença de Parkinson, depois de pedir a intercessão do
Papa; e, para a santificação, contará, segundo se diz, a cura duma mulher da
Costa Rica com lesões cerebrais não especificadas, no preciso dia da
beatificação do Papa e depois da família ter pedido a sua intervenção.
Não quero ser irreverente, mas as curas sem explicação
não são tão raras como isso. Não faltam médicos que assistiram a curas sem
explicação. Sei do que estou a falar. Não tenho dados, mas nos tempos modernos
predominam os milagres envolvendo curas, nalguns casos discutíveis—é onde é
mais fácil encontrar o milagre. Concretamente, uma cura sem explicação, com
base em relatórios sumários e discutíveis duma doente mal estudada, foi usada no
processo dos pastorinhos de Fátima. Falando com um sacerdote e confrontando-o
com os factos constatei ser ele de opinião que deveria ser excluída a exigência
dos milagres nos processos de beatificação e santificação.
A igreja já reviu muitas posições de antigamente,
nomeadamente a Inquisição e as Cruzadas. Fez bem—mesmo muito bem. Era altura de
começar a pensar nas beatificações e santificações. Todos os candidatos a tal
são exemplos para os crentes e devem ser distinguidos. Mas deviam sê-lo de
forma mais espiritual e menos formal. Acho que todos beneficiavam com isso.
Digo-o com o mesmo à vontade dos que condenavam as fogueiras da Inquisição e as
Cruzadas.
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