Pacheco Pereira é uma figura rebarbativa que não faz
muito o meu género. Intelectualmente superior, insere-se tal intelecto numa personalidade
que é "do contra" por sistema e desagradável por vocação. Não posso,
contudo, estar em desacordo com ele por princípio daí decorrente, sob pena de
enfermar do mesmo mal.
Pacheco Pereira escreveu uma carta ao Dr. Soares, a
propósito da reunião paralítica contra o actual governo, realizada uma destas
noites na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa. Nela diz coisas
boas e menos boas, em minha opinião; mas vale a pena lê-la. O essencial vai
transcrito a seguir—o resto é "palha".
[...] O que está a acontecer em Portugal é a conjugação
da herança de uma governação desleixada e aventureira, arrogante e despesista,
que nos conduziu às portas da bancarrota, com a exploração dos efeitos dessa
política para implementar um programa de engenharia cultural, social e
política, que faz dos portugueses ratos de laboratório de meia dúzia de ideias
feitas que passam por ser ideologia.
Tudo isto associado a um desprezo por Portugal e pelos
portugueses de carne e osso, que existem e que não encaixam nos paradigmas de
“modernidade” lampeira, feita de muita ignorância e incompetência, a que
acresce um sentimento de impunidade feito de carreiras políticas
intrapartidárias, conhecendo todos os favores, trocas, submissões, conspirações
e intrigas de que se faz uma carreira profissionalizada num partido político em
que tudo se combina e em que tudo assenta no poder interno e no controlo do
aparelho partidário.
Durante dois anos, o actual Governo usou a oportunidade
do memorando para ajustar contas com o passado, como se, desde que acabou o
ouro do Brasil, a pátria estivesse à espera dos seus novos salvadores que, em
nome do "ajustamento" do défice e da dívida, iriam punir os
portugueses pelos seus maus hábitos de terem direitos, salários, empregos,
pensões e, acima de tudo, de terem melhorado a sua condição de vida nos últimos
anos, à custa do seu trabalho e do seu esforço.
O "ajustamento" é apenas o empobrecimento,
feito na desigualdade, atingindo somente "os de baixo", poupando a
elite político-financeira, atirando milhares para o desemprego, entendido
como um dano colateral não só inevitável como bem-vindo para corrigir o mercado
de trabalho, "flexibilizar” a mão-de-obra, baixar os salários. Para um
social-democrata, poucas coisas mais ofensivas existem do que esta desvalorização
da dignidade do trabalho, tratado como uma culpa e um custo, não como uma
condição, um direito e um valor.
Vieram para punir os portugueses por aquilo que
consideram ser o mau hábito de viver "acima das suas posses", numa
arrogância política que agravou consideravelmente a crise que tinham herdado e
que deu cabo da vida de centenas de milhares de pessoas, que estão, em 2013,
muitas a meio da sua vida, outras no fim, outras no princípio, sem presente e
sem futuro.
Para o conseguir, desenvolveram um discurso de divisão
dos portugueses que é um verdadeiro discurso de guerra civil, inaceitável em
democracia, cujos efeitos de envenenamento das relações entre os portugueses
permanecerão muito para além desta fátua experiência governativa. Numa altura em
que o empobrecimento favorece a inveja e o isolamento social, em que muitos
portugueses têm vergonha da vida que estão a ter, em que a perda de sentido
colectivo e patriótico leva ao salve-se quem puder, em que se colocam novos
contra velhos, empregados contra desempregados, trabalhadores do sector privado
contra os funcionários públicos, contribuintes da segurança social contra os
reformados e pensionistas, pobres contra remediados, permitir esta divisão é um
crime contra Portugal como comunidade, para a nossa Pátria. Este discurso
deixará marcas profundas e estragos que demorarão muito tempo a recompor. [...]
[...] Precisamos
de ajudar a restaurar na vida pública um sentido de decência que nos una e
mobilize. Na verdade, não é preciso ir muito longe na escolha de termos, nem
complicar os programas, nem intenções. Os portugueses sabem muito bem o que
isso significa. A decência basta.
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(Com colaboração de António-Pedro Fonseca e J. Castro Brito)
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(Com colaboração de António-Pedro Fonseca e J. Castro Brito)
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