quinta-feira, 12 de maio de 2011

A PROSA DE MACHADO DE ASSIS

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Não me admira, dizia um poeta antigo, que um homem case uma vez; admira-me que, depois de viúvo, torne a casar. Valentim Barbosa achava-se ainda no primeiro caso e já compartia a admiração do poeta pelos que se casavam duas vezes. Não é que a mulher dele fosse um dragão ou uma fúria, uma mulher como a de Sócrates; ao contrário, Clarinha era meiga, dócil e submissa, como uma rola; nunca abrira os lábios para exprobrar ao marido uma expressão ou um gesto. Mas que faria então a desgraça de Valentim? É o que eu vou dizer aos que tiverem a paciência de ler esta história até o fim.
Valentim fora apresentado em casa de Clarinha pelo correspondente de seu pai no Rio de Janeiro. Era um rapaz de vinte e oito anos, formado em direito, mas suficientemente rico para não usar do título como meio de vida.
Era um belo rapaz, no sentido mais elevado da palavra. Adquirira nos campos riograndenses uma robustez que lhe ia bem com a beleza máscula. Tinha tudo quanto podia seduzir uma donzela: uma beleza varonil e uma graça de cavaleiro. Tinha tudo quanto podia seduzir um pai de família: nome e fortuna.
Clarinha era então uma interessante menina, cheia de graças e prendas. Era alta e magra, não da magreza mórbida, mas da magreza natural, poética, fascinante; era dessas mulheres que inspiram o amor de longe e de joelhos tão impossível parece que se lhes possa tocar sem profanação. Tinha um olhar límpido e uma fisionomia insinuante. Cantava e tocava piano, com a inspiração de uma musa.
A primeira vez que Valentim a viu, Clarinha saía da cama, onde a detivera, durante um mês, uma febre intermitente. Um rosto pálido e uns olhos mórbidos deixaram logo o advogado sem saber de si, o que prova que não havia nele uma alma de lorpa.
Clarinha não se inspirou de nada; gostava do rapaz, como o rapaz gostara de outras mulheres; achou-o bonito; mas não sentiu amor por ele.
Valentim não teve tempo nem força para analisar a situação. Ficou abalado pela menina e decidiu-se a apresentar-lhe as suas homenagens. Não há ninguém que tome mais facilmente intimidade do que um namorado. [...]
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Machado de Assis in "Astúcias de Marido"
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